Misturado entre as demais crianças, a maioria primos e vizinhos próximos, do Povoado Serra dos Pereiras, interior do município de Caldeirão Grande do Piauí, localizado no coração da caatinga piauiense e distante 441 quilômetros da capital Teresina, o pequeno Lucas Emanoel, de 7 anos, é mais um menino descobrindo os limites do seu próprio mundo. Ele joga bola, anda de bicicleta, desbrava novos quintais.
Mas, tudo isso requer um esforço maior para ele. Diagnosticado desde o nascer com uma deformidade osteoarticular intitulada Pé Torto Congênito (PTC), que compromete os tecidos musculoesqueléticos e é caracterizada pela aparência do pé torcido ou até mesmo totalmente invertido, Lucas lidou desde cedo com dificuldades de locomoção e até mesmo para ficar em pé.
“Ele até gosta de jogar bola, só que na hora que começa, já se cansa, porque não consegue ficar parado. Certa vez, antes dele começar o tratamento, me deparei com ele, no quintal, de joelhos, se urinando, porque não teve algo para se apoiar na hora e perdeu o equilíbrio. Aquilo me deixou muito triste. Para uma mãe, é muito doído”.
O relato é da mãe de Lucas, a doméstica Valdiete Isabel de Jesus (25). Ela é familiarizada com a doença desde antes do nascimento do filho. O esposo, o mecânico Alex Mariano Leal (30), também sofre com a enfermidade. Cirurgiado ainda criança, ele traz as cicatrizes dos quatro procedimentos na pele e o desejo de uma história diferente para o filho.
“Na minha época, não tinha tratamento. A gente ia para cirurgia direto. Tive de fazer duas em cada um dos pés. Carrego comigo algumas sequelas, que espero que não acompanhem meu menino”, torce.
Tentativas em vão, o contato, a esperança
A sorte da família começou a mudar ainda no final de 2019, quando um dos inúmeros mutirões ortopédicos, que Lucas e os pais se acostumaram a frequentar nos anos anteriores, é realizado na cidade de Picos, polo econômico e social daquela região. Lá, eles conheceram a figura do médico ortopedista pediátrico, Vinícius Nascimento, especialista na abordagem da doença e diretor do Hospital Infantil Lucídio Portela (HILP).
Nascia, ali, naquele encontro, um novo caminho para Lucas trilhar. Após o primeiro contato e conversas iniciais, o médico sugeriu que o garoto passasse a fazer o acompanhamento no HILP, hospital referência não só no atendimento de Pé Torto Congênito, como demais especialidades voltadas à saúde do público infantil. “Nós começamos a disponibilizar o tratamento para PTC no Hospital Infantil a partir de 2013. Hoje, nós conseguimos fazer esse tratamento em três ambulatórios, três dias por semana. Muitas crianças nascem com esse problema e as famílias desconhecem que podem tratar, acham que o processo vai trazer angústia aos pequenos. Aqui, no HILP, nós desmistificamos isso. É possível tratar sem que as crianças sofram com dores e traumas”, explica Vinícius.
Nos últimos 18 meses, 583 atendimentos para a especialidade foram agendados no Hospital Lucídio Portela. Crianças identificadas como portadoras da deficiência, devem procurar a rede de saúde pública, através do Programa de Saúde da Família (PSF), ou unidade Hospitalar credenciada, onde esse profissional é encaminhado para o serviço de referência, no Hospital Infantil.
Pé Torto Congênito e o Método de Ponseti
Apesar das implicações que causa no dia a dia, o Pé Torto Congênito (PTC) possui tratamento clínico e pode ser superado em definitivo pelos pacientes. O principal deles, o Método de Ponseti, consiste no alongamento e engessamento dos membros inferiores até a base das coxas, com o pé devidamente posicionado. Após essa etapa, em alguns casos, uma órtese é utilizada por mais algumas semanas.
O diagnóstico e tratamento precoce colaboram com a recuperação das crianças. Quanto mais cedo iniciado o processo, maiores as chances de sucesso. Em alguns casos, é necessária uma intervenção cirúrgica, em uma etapa posterior.
“O ambulatório do Hospital Infantil permite que essas crianças tenham uma vida normal lá na frente. É preciso que essa informação chegue a mais pessoas. Tratamento gratuito, através do SUS. Feito por especialistas em ortopedia pediátrica e acompanhados de uma equipe multidisciplinar, composta por enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Nosso objetivo é dar um futuro sem traumas e sequelas para essa garotada”, pontua Vinícius.
Um novo dia, uma nova vida
Do primeiro contato de Lucas com o pediatra, até a consulta inicial, em Teresina, mais de um ano se passou. O surgimento da pandemia do novo coronavírus e todas as impossibilidades de locomoção e ordenamento social por ela geradas, dificultaram o início do tratamento, que se concretizou apenas em março de 2021.
Nesse meio tempo, a família ganhou um novo integrante. O caçula, Ítalo Gabriel, hoje com um ano e cinco meses, deu a Lucas um irmão mais novo e ao casal uma urgência: ele também nasceu portador de PTC. Não havia alternativa, era preciso encarar os tratamentos na capital.
Logo nos primeiros dias, um problema se mostrou claro: a distância. Sem condições financeiras para manter o deslocamento semanal, de Caldeirão Grande até a capital, que em passagens lhe custava até R$ 500,00 por viagem, Alex Mariano não viu alternativa, a não ser a mudança temporária para Teresina.
“Ela (sua esposa) veio uma semana e voltou de novo para lá. Mas, ficou muito ruim, porque era necessário a gente estar toda semana em Teresina. Foi quando nós pensamos que seria melhor nos mudarmos temporariamente, do que ficarmos indo e voltando”, explica.
Decisão tomada, a família alugou uma casa na nova cidade. O que não significou o fim do aperto financeiro. A vida nova multiplicou alguns gastos.
“Aluguel, alimentação, água, luz, créditos de telefone, os táxis para poder vir para o hospital. Tudo isso eu tenho arcado com minha aposentadoria. É o que nos auxilia a sobreviver”, enumera Alex, que recebe um benefício assistencial à pessoa com deficiência – BPC/LOAS.
“A gente contou muito com a ajuda dos novos vizinhos. Um deu um carrinho, outro uma cama. Porque nós viemos só com o que deu pra trazer. Algumas roupas, ventilador… se não fosse por eles, não sei como a gente passaria esse tempo.”, agradece Valdiete.
Passados dois meses da nova rotina, Lucas e Ítalo começam a apresentar os avanços do tratamento.
“Eles têm evoluído muito. Todas às segundas, quando precisamos fazer a troca dos gessos, notamos a evolução dos pezinhos deles. É quando bate aquele sentimento de que todo o sacrifício está valendo a pena, de que, em breve, meus filhos terão uma vida normal.”, se emociona Valdiete.
Com o avanço no tratamento de gesso, Lucas se prepara para a próxima etapa, a cirurgia. O procedimento, que também será liderado pelo dr. Vinícius Nascimento, custeado pelo SUS e realizado no próprio Hospital Infantil, está marcado para a primeira quinzena de julho. Para o menino de sete anos, a perspectiva de “novos pés” dá impulso para novos planos.
“Agora, com os meus pés, vai melhorar muito minha vida. Vou poder andar de bicicleta (sem cair), jogar bola (sem cansar) … não vejo a hora de estar de volta em casa.”, sonha o garoto.
Em Serra dos Pereiras, distante 441 quilômetros dos gessos temporários e em meio aos amigos de sempre, velhos quintais aguardam um novo Lucas redescobrir os caminhos de seu próprio mundo.